Na pele de calango

Foto: Ive Luna




Motivada pelo artigo de Eliane Brum, “Como resistir em tempos brutos”, resolvi abrir meu verbo.[1]


Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, escreve muitíssimo bem, considerando que isto inclui fluidez sincera, alma que se banha. No entanto, como ela mesma afirma, o que estamos atravessando é também "uma crise de identidade e de palavra". Aí é que no proliferar das letrinhas e entre-linhas que demandam conjunções, disjunções e concordâncias, vemos o poder da formação discursiva criar mitos, anti-mitos, heróis, anti-heróis, e seu nocivo binarismo, que força e reforça sempre dois lados (ou isto ou aquilo, contra ou à favor), estremecer as falas pelos mal-entendidos ressentimentos – o tal juízo que faz um coração apertado – sem se ater à multiplicidade das amarrações, junções, acoplamentos, levando-nos à situação política atual e aos eventos estarrecedores em que estamos mergulhados. 

Percebo que uma das coisas mais complexas da organização do universo político é, até hoje, a formação dos partidos políticos. Coisa que no Brasil, de primeira mão, só político se vê na obrigação de entender, sendo que muitos, mesmo com esforço, não alcançam; aqueles que não o são, na maioria, deixam isto de lado. Um partido político pode ser vislumbrado como uma tessitura de nós: as linhas tramadas são práticas de mover o pensar o como, o modo de agir sobre a “complexificação” do aparelho do Estado sob a régia do poder político. Fala-se muito fácil em “ideologias” de esquerda, de direita, de centro-esquerda, de centro-direita, de extrema-esquerda, de extrema-direita, sem saber que, necessariamente, o termo ideologia se fez uma ameaça pela própria manipulação e contorção das ideias, no que diz respeito a criação do conceito e a vida do conceito que atua sobre o vivido.

O Partido dos Trabalhadores, nascido em 1980, é um partido com idade suficiente para ter vivido sua primeira, segunda e terceira infância, sua adolescência e seus deslumbramentos, o início de sua vida adulta, onde pensamentos e juízos se tornam mais complexos, propensos aos inchaços e infestações  do modismo (em 2005, contava com 1,59 milhão de filiados), e chegar aqui, à beira de sua vida adulta, quando se acentuam a especialização e as habilidades à solução de problemas, sentindo os efeitos da maturidade que chega e deflagra o agravamento contagioso da bagunça geral das ideologias que por aí se tramam.  Trajetória que faz do PT um dos maiores e mais importantes movimentos de esquerda da América Latina. No entanto, é preciso atentar-se aos purismos das lógicas partidárias identitárias: o PT não seria o maior partido de esquerda contemporâneo se não levasse em seu dorso de tubarão, perigosamente, parasitas que seguem prejudicando o organismo hospedeiro.

O momento atual pede, decididamente, que soe grave uma nota de esclarecimento, para além de polaridades ideológicas e seus dualismos arcaicos, levando a sério as bricolagens: a “esquerda” é uma posição política implicada com a garantia das diferenças pela pura diferença, a salvaguarda das minorias, o combate às desigualdades, promovendo movimentos pelos direitos humanos, movimentos anti-guerras, movimentos ambientalistas, numa articulação ético-política entre o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. A “direita” política é a posição que se efetiva pela hierarquia social e legitima a desigualdade social como natural, inevitável e até mesmo desejável, fundamentando sua posição no direito natural e na tradição.

Sem Luiz Inácio Lula da Silva o PT não teria vindo à luz como veio. Lula é Lula, que envelheceu sob nossos olhos e que desde seu aparecimento político belicoso, irrefreável, vem incomodando, cutucando e atiçando o mais assustador vespeiro político desta nação, trazendo à baila insídias jamais previstas. Chegando à Presidência da República e agarrando com nove unhas um país colonizado e vendido desde a descoberta, com seu partido governando por quatorze anos, este operário fecha e reabre um novo círculo zodiacal à constelada nação brasileira. 

Brasil, um território imenso e diversificado, o segundo com mais áreas florestais depois da Rússia –  amazônia, cerrado, mata atlântica, caatinga, pampa e pantanal (flora, fauna, clima e cada pedaço sob o jugo de seus próprios colonizadores) –, desenha em sua geografia a riqueza de diversidades e o horror dos extremos. Do extermínio dos que o habitavam genuinamente, sobrou a miséria e a demência das coroas invasoras. Vício de origem. Passaram-se mais de quinhentos anos e ainda nos ressentimos pelo conto não ser de fadas e o feito não ser heroico. Sem mito nem herói não se cumpre o roteiro imaginado, não há campo simbólico para tamanhas idealizações. Contrariando a hábil psicanálise de Lacan que descreve “o mito individual do neurótico”, onde "tudo se passa como se os impasses próprios da situação original se deslocassem para um outro ponto da rede mítica, como se o que não é resolvido num lugar se reproduzisse sempre noutro”, Lula desfaz, a olhos vistos, mito e herói. 

Vamos ajudar na autocrítica? Ao contrário do que se esperava, quando eleito pela primeira vez, Lula não desceu o martelo da esquerda extremista, nunca se declarou comunista, mas decidiu se arriscar na corda bamba da moderação e abrir diálogos acrobáticos como modo de governar. Dos maus encaixes às estratégias do desastre, abriram-se rombos e, dos furos, saídas despudoradas. Funcionou na tremura por quatro anos, até que a envenenada seiva política começou a vazar: que descaramento, pensam os senhores políticos, ele se elegeu pela segunda vez. Por mais complexas que sejam as artimanhas, a questão do fato pôs claramente um incômodo subliminar e uma acidez inconfessa: horizontalizar poderes desmancha privilégios. A eloquência e a erudição dos dotados de refinamento e descendência privilegiada não vão abrir mão do bom senso de seu direito natural e da tradição que os fazem "superiores". O poder do povo e seu real bem-estar não estão na pauta dessa minoria dominante. “Democracia” vira um passe-partout, anda para todos os lados no bom discurso político demagogicamente articulado. A economia, uma granada dourada, no descuido dos conchavos e acordos, já hábito provável, vai explodir na mão de quem da riqueza menos usufrui. Essa coisa de direitos civis igualitários só serve se antes estiver garantida uma superioridade legítima, um princípio de natureza, sobre as intoleráveis matilhas de “selvagens”, essa gente esquisita que vive em bandos, tribos, inflamadas, tornando social suas paixões e socializando seus interesses. O soberano, afinal, conta com a submissão de seus súditos.

O pensamento liberal de hoje, jovem, eloquente e erudito, esconde sua vaidade sob a pele de calango. A pele do calango serve como uma armadura, escamosa e resistente. A cauda se solta para enganar o predador selvagem e algum tempo depois ela nasce de novo. O calango não anda em bandos, não faz tribos, escapa à coletividade, embrenha-se no mato, camufla-se. O sedutor pensamento liberal, afundado em sua raiz, joga a liberdade nos extremos (positiva ou negativa) para apanhá-la pelo centro, com sua vigorosa e sensata moderação pessimista, pragmática, moralista e racional, orgulhosa de se declarar livre de exageros. Tal espírito liberal, assim produz fundamento para seu centrismo radical, sempre disposto a nascer de novo: nem isto, nem aquilo, e aqui chega e aqui está, e fica vaidoso de seu bom senso, no livre fluxo da individualidade, longe desse bando de apaixonados. O senso comum, a coisa do mundo melhor repartida, sorrateiramente imprime no pensamento uma imagem moral questionável, a da livre iniciativa e do merecimento. Assim é que os liberais fundam seu direito natural de soltar a cauda e esconderem-se em alguma fenda ou buraco para garantir sua autonomia privada, no uso de suas faculdades de entendimento individualista, de identidade narcísica camuflada. Essa espécie de lagarto, réptil fascinante, nada tem a ver com isto, apenas inspira o modo de rastrear o complexo pensamento humano neoliberal que se arroga superior em espécie e natureza no que tange a liberdade.

Em outro artigo intitulado “Nunca existiu governo do PT”[2], publicado há um ano atrás pela revista Cult, encontro a surpreendente análise de Claudio Oliveira que arregaça e amplia o que, ainda hoje, anda-se às cegas a cerca dos “erros do PT”. Em destaque, a frase: “A maioria dos chamados ‘erros do PT’ são erros de uma coalizão entre partidos de esquerda e de direita que governaram o país nos últimos treze anos”. Navegar é preciso para ver de longe. O governo do PT não inventou a corrupção, ao contrário, foi Lula quem abriu a torneira, criando o órgão da Controladoria Geral da União (CGU), legítima agência anticorrupção, estruturando a Polícia Federal e garantindo a autonomia do Ministério Público em suas atribuições de investigar o poder público, incluindo os próprios integrantes do governo.  Alianças e concessões conchavam traições: o embuste de Temer, o impeachment de Dilma, a prisão de Lula.

O Partido dos Trabalhadores, depois de chegar ao 2o turno das oito eleições diretas para presidente, desde 1989 (pós período militar e as eleições indiretas de 1985), e ganhar quatro eleições presidenciais, chega às urnas, em 2018, com Lula na prisão. A perseguição e condenação de Lula, reconhecido internacionalmente como o mais controvertido preso político da história do Brasil, deflagrou a estapafúrdia camuflagem da corrupção política brasileira, coroada com a vergonhosa politização do Poder Judiciário.

Pertenço a uma geração que nascia com Brizola gritando na rádio: “Invadam os quartéis, prendam os generais!”. Na época, Brizola era um dos pré-candidatos para a eleição presidencial de caráter direto, marcada para outubro de 1965. Foi assim que ouvi contarem tal façanha, quando já tinha uso da razão para assimilar mensagens, e sei que em nada deu o furor do ex-governador do Rio Grande do Sul. Todas as candidaturas foram abortadas e a eleição nunca ocorreu devido o golpe militar. Afinal, era um Brasil que tocava “pra frente” noventa milhões aos empuxos da ordem e do progresso. A vista alcança diferente quando, aos 53 anos, nem década a menos, nem década a mais (isto faz diferença), sente-se até o tutano os feitos do passado na tremura do presente vivido.


Hoje fermenta o caldo grosso desse paternalismo, fazendo grave celeuma entre mitos. Estamos azedados pela raiz, intoxicados de segmentaridades, estratos, territorialidades sociais, políticas, éticas, estéticas, com subjetividades submersas capturadas avançando o tsunami. Quem diria, temos aí uma grossa parcela da população brasileira fascistizada pelo capitão insano, orgulhoso do bisavô nazista, armado até os dentes com termos chulos e grosserias, destilando ódio, racismo, misoginia, xenofobia, homofobia. Temos, também, um professor, cientista social e doutor em filosofia, sereno e educado, que resiste a degola anti-petista e vai dando fôlego e asas ao devir minoritário (não menos numeroso) ameaçado, atacado, ferido, indignado, confuso, perdido, que insiste outra vez virar o jogo. Eis o Brasil, enfim, dando a cara ao sol nesse tórrido meio-dia.  








[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/08/opinion/1539019640_653931.html
[2] https://revistacult.uol.com.br/home/colunistas/claudio-oliveira/






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